No dia 23 de agosto de 2007, um jornal de grande circulação no país publicou a transcrição de uma conversa entre dois ministros do STF. Essa conversa ocorreu no que os meios de comunicação chamaram genericamente de Intranet, mas aqui podemos definir como um software interno de Instant Messenger (semelhante aos conhecidos ICQ, Skype e MSN). Tentaremos mostrar, nesse pequeno artigo, que tal ação constitui-se em um grave caso de violação de direitos constitucionalmente protegidos além da tipificação do crime de interceptação telemática ilegal
Devemos esquecer, em um primeiro momento, que se tratavam de ministros de nossa Suprema Corte. Tal fato é desimportante, na medida em que a Constituição deve ser aplicada a todos os cidadãos do país indistintamente. O fato de alguém ser um ministro da mais alta corte não faz (na teoria) que seus direitos constitucionais sejam mais importantes do que os do cidadão comum. A Constituição não faz distinção nesse ponto.
Ressaltamos também que a privacidade e a intimidade, como direitos da personalidade que são, merecem proteção especial e respeito irrestrito da sociedade. O dever geral que todos têm de respeitar os direitos alheios não fogem à presente situação.
A Constituição é clara em estabelecer os limites da proteção à intimidade e privacidade, consubstanciados pela inviolabilidade do sigilo. Vejamos:
Art. 5º, inc. XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;
Já a lei 9296/96 nasceu para regulamentar o inciso acima citado e trata da questão da interceptação de dados e comunicações telefônicas. Essa lei é tão restritiva que permite a interceptação apenas quando se tratar de investigação criminal, em crimes punidos com detenção, quando houver indícios razoáveis de autoria e a prova não puder ser produzida por outros meios. Esta é a reprodução do art. 2º da lei. Isso serve para demonstrar que não é em qualquer caso que a interceptação é permitida: ela é tão severa que, além de todos estes requisitos, requer ainda a análise judicial (mesmo que em juízo de cognição sumária). Isso demonstra a seriedade do descumprimento de tais normas quando da produção da prova. Caso a interceptação seja realizada, mesmo que pela polícia, mas em desacordo com a lei, a prova obtida torna-se ilícita (tanto por ser ilícita e ilegítima, se for o caso) e o processo todo pode ser anulado. Tal prevê a teoria dos frutos da árvore envenenada, ou “fruit of the poisonous tree theory” do Direito Americano. A referida teoria entende que caso uma prova seja obtida de maneira ilegítima ou ilegal (com inobservância do direito material ou processual) todo o restante do processo é contaminado por sua ilicitude. Tudo isso com a ressalva de que em casos excepcionalíssimos a prova ilícita pode ser aceita no processo quando representar o único meio de absolvição do réu no processo penal (HC 74678 – STF) . No entanto, tal assunto não diz respeito especificamente ao assunto aqui tratado.
A mesma lei define em seu art. 10 o crime de interceptação ilegal:
Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei.
Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa.
A questão da definição do termo interceptação é tormentosa e é fruto de acalorados debates. No entanto, em síntese, a interceptação seria a interferência do tráfego de informações ou conversas telefônicas realizada por um terceiro estranho à comunicação, sem a permissão dos participantes, com o fim de captar o referido fluxo.
Dito isso, mencionamos os recentes casos de criminosos presos por furto qualificado na retirada indevida de dinheiro de contas bancárias. Para que pudesse ser feita a interceptação de conversas em Instant Messenger, houve a necessidade de uma ordem judicial prévia para tanto. Tudo de acordo com a lei 9296/96. Igualmente, estes mesmos criminosos foram processados também por interceptação telemática ilegal, à medida que captavam dados dos clientes bancários no momento em que eram transmitidos, enquadrando-se tal conduta no referido tipo penal.
Mas o cerne de toda essa discussão é: o ato de fotografar uma conversa ocorrida em um Instant Messenger, no momento que ela acontece, constitui o ilícito penal previsto na lei 9296/96? Em nossa opinião a resposta é sim, se observado o conceito de interceptação exposto acima. A interferência que capta e reproduz a informação, mesmo que realizada por meio de fotografia deve ser considerada criminosa.
Outro ponto importante, e que contraria a nossa própria tese é: não estariam os ministros, ao realizar a conversa às lentes dos fotógrafos, aceitando a possibilidade de terem suas comunicações interceptadas? É certo que a privacidade é contextual, ou seja, depende do ambiente. Não nos esqueçamos do caso de pessoas que tiveram a conversa em chats públicos interceptadas e alegaram a invasão da privacidade digital, o que foi negado (RHC 18.116 – STJ). Nesse caso específico, em face daquele contexto, ou seja, de estarem em um ambiente público, sujeitavam-se eles à interceptação. Isso importa em se reconhecer que não há privacidade em um chat público de internet. Portanto, no caso do STF, devemos nos perguntar, há expectativa de privacidade no presente caso? Acreditamos que a resposta é que sim. Há a privacidade, pois as conversas foram realizadas em um Instant Messenger, no computador pessoal dos ministros e na rede privada do STF. Por certo, quando as conversas ocorriam, os ministros não tinham a intenção e nem poderiam aceitar, mesmo que tacitamente, que suas comunicações pudessem ser interceptadas, seja através de um software específico para isso (sniffer ou keylogger) ou seja pela fotografia.
A questão da tipicidade da fotografia da tela configurar o crime de interceptação telemática ilegal é que merece a atenção dos juristas. Não podemos esquecer da impossibilidade de utilizarmos a analogia in malam parte, ou seja, para a condenação. A discussão deve ser pautada pelo cuidado de não realizar a analogia para a constituição do tipo penal. Mesmo assim, entendemos que o meio em que a interceptação é realizada é desimportante para a configuração do crime, desde que haja a real captação do fluxo de informações por terceiro estranho no momento em que ele é produzido. Tal definição é importante, uma vez que a interceptação tem que ocorrer temporalmente no momento em que a informação trafega entre um ponto e outro. Isso é crucial para a tipificação; tanto que se a conversa já foi produzida e está armazenada digitalmente em um HD, por exemplo, e alguém a acessa indevidamente, não há o crime de interceptação telemática ilegal. Isso pois a informação já fora produzida e em razão disso não há a captação ou interferência no momento de tráfego.
Com isso, o debate recai sobre a tipicidade de fotografar o fluxo de informações, se é que ele pode ser compreensível ao humano (não sendo linguagem de máquina, incompreensível à razão humana). Importante destacar a finalidade do ato de quem fotografa: havia a intenção de captar a conversa no momento em que era produzida? Salvo melhor juízo, não vemos a possibilidade da ocorrência desse crime na modalidade culposa. Em sendo assim, entendemos que quem fotografa uma tela de computador, em que há a conversa instantânea entre duas pessoas comete o crime em questão. É evidente que, em face da controvérsia acerca da consciência ou não da conduta criminosa, nada impediria que aplicássemos a teoria do erro de tipo, na qual o agente não tem consciência da ilicitude do ato.
Temos como conclusão, portanto, a configuração do crime de interceptação telemática ilegal quando um terceiro fotografa a tela de um computador, captando assim o fluxo de informações (de duas pessoas) ali produzido.
Os comentários estão desativados.